O Peso da Excelência: Jovens Editores, Peer Review e o Fim do QUALIS A1?
"A escrita acadêmica não é apenas o lugar da elaboração, mas também da escuta"
Uma das maiores complexidades enfrentadas pelas revistas acadêmicas brasileiras hoje é manter gratuidade e excelência, ao mesmo tempo em que se sustenta o sistema de avaliação por pares (peer review) sem exaurir emocional e fisicamente os envolvidos. Para produzir essa matéria conversei com alguns professores que colocam revistas acadêmicas para circular, dentre eles, Paula Regina Ribeiro (Diversidade e Educação) e o professor doutor Felipe Carvalho da Silva (Revista Docencia e Cibercultura).
É um dilema de difícil resolução: editores muitas vezes não remunerados, pareceristas voluntários, prazos apertados, pouco reconhecimento institucional e uma cultura acadêmica que ainda mede qualidade científica majoritariamente pelo filtro QUALIS — sistema que classificava periódicos de A1 (o mais alto) a C ou D (não pontuados). Mas o QUALIS está chegando ao fim. E com ele, abre-se espaço para pensar novas formas de valorizar a produção acadêmica.
Publicar artigos científicos é parte fundamental da trajetória acadêmica, seja para pesquisadores iniciantes, seja para autores experientes. Mais do que uma exigência institucional, a publicação é um ato de inserção crítica em uma comunidade de saber, na qual se compartilham descobertas, reflexões, hipóteses, métodos e dilemas. Ao publicar, o/a pesquisador(a) deixa de falar apenas para seu orientador ou grupo de pesquisa e passa a dialogar com o campo mais amplo, participando ativamente da construção coletiva do conhecimento.
Do ponto de vista da formação, publicar permite amadurecer argumentos, exercitar a escrita acadêmica e tornar visível o processo de investigação. Além disso, é através da publicação que se constroem reputações científicas, redes de colaboração e reconhecimento institucional — inclusive na avaliação de programas de pós-graduação, que consideram a produção bibliográfica um critério central.
É importante destacar que não se deve publicar por publicar. A pressa ou a pressão quantitativa podem comprometer a qualidade e a integridade da pesquisa. O melhor momento para publicar um artigo é quando há um recorte claro, dados ou reflexões consistentes e uma contribuição efetiva ao campo. Isso pode ocorrer ao final de uma disciplina, de uma etapa do projeto, de uma pesquisa de campo ou em resposta a um debate recente.
Publicar também é um ato político: é escolher o que merece circular, com quem se deseja dialogar e quais epistemologias se quer fortalecer. Por isso, é preciso atenção à escolha da revista, à adequação ao escopo, às normas editoriais e à responsabilidade ética com fontes, dados e sujeitos envolvidos.
Por fim, a publicação é uma via de mão dupla: ao mesmo tempo que se oferta um texto ao mundo, também se aceita a possibilidade de receber críticas, sugestões e interlocuções. Trata-se, portanto, de um compromisso com o conhecimento público, com a ciência e com a transformação social que ela pode promover.
📌 O que muda com o fim do QUALIS?
A partir de 2025, a CAPES implementa uma nova sistemática de avaliação e classificação, que promete tornar o processo mais justo e dinâmico:
Adeus à nota única por periódico. Agora, artigos individuais receberão classificações distintas, mesmo que publicados na mesma revista. Isso valoriza o conteúdo, e não apenas o “fator de impacto” da publicação. A nova classificação será acessada pela Plataforma Sucupira, na aba “Qualis”, onde pesquisadores/as podem consultar diretamente as informações dos periódicos e artigos.
Os critérios de avaliação passam a considerar não só a periodicidade, mas também a relevância social, inovação e impacto do trabalho científico. A CAPES também se comprometeu a divulgar orientações claras e atualizadas para garantir que toda a comunidade acadêmica possa se adaptar com segurança e equidade às novas normas.
Essa mudança é significativa porque desloca o foco do “onde se publica” para o “o que se publica”, algo que editoras e editores de revistas científicas vêm defendendo há anos.
Jovens editores estão redesenhando o futuro
Nos últimos anos, temos visto um movimento potente: editoras e editores jovens têm assumido papéis centrais na gestão dos periódicos, especialmente os discentes. Um exemplo notável é o edital 01/2025 da Revista de História da UFBA, que oferece 10 vagas para estudantes da graduação e pós-graduação — inclusive de outras universidades.
O edital revela um cuidado metodológico que pode servir de modelo: gestão colegiada, critérios éticos, foco nas linhas de pesquisa e treinamento em plataformas como o Open Journal Systems (OJS). Tudo isso sem qualquer remuneração. O trabalho é por pura ética e amor ao conhecimento.
“Encerrar meu ciclo no Jornal de Psicanálise e assumir a editoria da Revista Brasileira de Psicanálise reafirma minha crença no trabalho coletivo. A mudança do foco do onde para o que se publica pode democratizar o conhecimento — mas ainda carecemos de diretrizes claras da CAPES para compreender esse novo cenário editorial.” — Berta Azevedo, editora da Revista Brasileira de Psicanálise
A pergunta que não quer calar: quem cuida de quem cuida da ciência?
Porque a excelência editorial não está apenas no fator H ou na indexação internacional, mas na ética coletiva, no cuidado com o tempo e a saúde de quem revisa, edita, publica e distribui conhecimento de forma gratuita.
A excelência está mudando de lugar
É tempo de repensar o que chamamos de excelência. Ela não cabe mais em um índice. Excelência agora é escuta, acessibilidade, representatividade, coragem editorial e um pacto com o comum.
O novo sistema da CAPES — se bem conduzido — pode nos ajudar a construir uma ciência menos elitista, menos performática e mais viva. E essa é uma oportunidade histórica que não podemos desperdiçar.
Afinal, como já dissemos por aqui:
Não existe excelência que justifique o adoecimento.
E nenhuma política editorial será realmente ética se não for também afetiva.
“Hoje, na FURG, temos doutorandos e uma bibliotecária atuando como editores assistentes — todos voluntários. Os pareceristas estão sobrecarregados e muitas vezes recusam convites. Recebemos 90 artigos para um único dossiê. A demanda é contínua. O que mais me preocupa são os critérios da CAPES para avaliar a qualidade dos artigos.”
— Paula Regina Ribeiro, editora acadêmica na FURG
Juventude escrevente, maturidade experiencial: o intervalo entre a palavra e a prática
Vivemos um momento histórico em que a juventude acadêmica dispõe de múltiplos canais de expressão, ampla capacidade técnica de escrita e acesso quase ilimitado a fontes e referenciais teóricos. Essa geração é marcada por uma potência textual notável, uma desenvoltura argumentativa precoce e, muitas vezes, uma ousadia criativa que tensiona formas cristalizadas de produção do saber. No entanto, é preciso reconhecer — sem condescendência nem desdém — que a eloquência teórica nem sempre se ancora na espessura da experiência.
Escrever, por si só, não garante enraizamento. Muitos textos hoje nascem de leituras apressadas, de repertórios ainda em constituição e de vivências que, embora legítimas, ainda não foram suficientemente atravessadas pelo tempo, pelo corpo e pela escuta do outro. Há uma lacuna — produtiva, mas real — entre a precocidade da escrita e a maturidade da aplicação. Essa diferença não deve ser lida como limitação, mas como parte do percurso formativo que toda e todo intelectual percorre.
A escrita acadêmica não é apenas o lugar da elaboração, mas também da escuta. E para escutar, é preciso estar exposto ao mundo, implicado nos conflitos, ferido pelas contradições daquilo que se quer compreender. Há saberes que não se acumulam: decantam. A experiência não substitui a leitura, mas lhe dá densidade; não silencia a teoria, mas a obriga a se curvar à realidade concreta.
O papel dos mais experientes, nesse cenário, não é desencorajar os mais jovens, mas ajudá-los a perceber que escrever é também esperar, revisar, fracassar, reaprender — e, sobretudo, agir. A escrita eficaz emerge, enfim, do encontro entre o gesto que nomeia e o gesto que vive. Nesse intervalo, entre o texto e o mundo, nasce a verdadeira potência transformadora do conhecimento.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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